Nas últimas semanas, como era de se esperar, vários artigos e opiniões sobre os impactos jurídicos da pandemia da Covid-19 foram publicados. Provavelmente, um dos temas mais discutidos até aqui diz respeito aos contratos e a possibilidade de a pandemia ensejar um cenário de força maior.
Algumas opiniões iniciais se açodaram em concluir que, em geral, contratantes não responderiam pelo inadimplemento de suas obrigações por decorrência da severidade da iminente crise econômica. Após algumas semanas de reflexão, uma segunda onda de opiniões vem, acertadamente, sugerindo maior reflexão sobre essa importante questão.
De qualquer modo, a única certeza é que estamos passando por um período de instabilidade, cujo fim ainda é impossível antever. Tal situação conturbada, fatalmente, poderá implicar diferentes orientações em futuras decisões judiciais.
Não só isso, a despeito de fortíssima tradição jurisprudencial contrária à revisão ou à resolução do contrato por eventos macroeconômicos em geral, os precedentes judiciais, em especial, do Superior Tribunal de Justiça, podem não ser suficientes para estabelecer, por ora, um grau desejável de segurança jurídica, porque a situação atual é obviamente inédita em tempos modernos.
É nesse contexto em que a lúcida compreensão dos institutos cunhados no Código Civil revela-se ainda mais importante, pois os efeitos da pandemia, seguramente, servirão de gatilho para configurar distintas situações, como por exemplo: (i) força maior (art. 393 CC), (ii) onerosidade excessiva (art. 478-480 CC); e (iii) desproporção do valor da prestação (art. 317 CC); além de outras em hipóteses mais específicas, como as que, e. g., regulam (iv) as relações de consumo (art. 6o, V, CDC) e (v) os contratos administrativos (art. 65, II, d, da Lei 8.666/93).
Contratos interempresariais: Nos termos do art. 393 CC, salvo disposição em contrário, a força maior é a matriz do evento que afasta a responsabilidade do contratante pelo inadimplemento da obrigação. Quando a obrigação não puder ser cumprida no tempo e no modo pactuados, por motivo de força maior, não haverá indenização por prejuízos causados.
Por isso que a força maior jamais poderá ser suscitada como fundamento para rescisão ou revisão de cláusulas contratuais. Ela, simplesmente, afasta a responsabilidade pelo inadimplemento, sendo sempre aferida ex post, segundo as vicissitudes de cada caso concreto. A exceção ocorre se o obrigado já se encontrava em mora ao tempo da ocorrência do evento de força maior (art. 394 CC).
As situações podem ser das mais variadas, desde o impedimento físico para o cumprimento da obrigação (e.g. fechamento de fronteiras) até o acometimento de doença que inviabilize o cumprimento da obrigação intuitu personae .
Para que a responsabilidade civil não seja imputada ao inadimplente, o cumprimento da obrigação deve se ter tornado realmente impossível ou completamente inútil, situação em que a força maior sequer precisa ser reconhecida por sentença desconstitutiva da obrigação. Pode até mesmo ser arguida como matéria de exceção, em sede de defesa.
Caso o cumprimento seja possível, tendo se tornado apenas mais oneroso do que esperado, a situação se aproximaria da chamada onerosidade excessiva, mormente nas relações de longo prazo — contratos de execução diferida (e. g. empreitada), continuada (e.g. depósito) ou de trato sucessivo (e. g. fornecimento).
Desde a concepção da teoria da cláusula rebus sic stantibus em época medieval (notadamente nas Glosas de Acúrsio e nos Comentários de Bártolo), é familiar a ideia de que a alteração superveniente das circunstâncias pode abalar o vínculo contratual. Já no século XX, os períodos críticos do pós-guerra inspiraram variadas teorias, dentre as quais as mais conhecidas são a teoria da imprevisão de origem francesa, a da base objetiva do negócio jurídico, de matiz alemã e a da excessiva onerosidade, positivada nos arts. 1.467 e 1.468 do Código Civil italiano.
Na sistemática brasileira, foi adotada, com algumas nuances novas, a teoria italiana da onerosidade excessiva. Com fundamento no art. 478 CC, a resolução contratual pode ser pleiteada caso eventos imprevisíveis (e somente imprevisíveis, não necessariamente extraordinários) tenham tornado a prestação muito mais onerosa do que se poderia supor à época da contratação, ocasionando ainda, e concomitantemente, extrema vantagem para a parte contrária.
Acolhendo apenas o filtro da imprevisibilidade, a ocorrência se verifica por uma análise do grau de (im)probabilidade do evento ocorrido, mesmo que se considere que a sua gênese se situe dentro da álea contratual. Nunca foi fácil e tampouco será, no cenário atual, especificar ex ante o que poderá ser considerado imprevisível para a procedência de um pedido de resolução contratual, mesmo levando em conta a significativa tradição jurisprudencial contrária ao reconhecimento da imprevisibilidade por eventos puramente macroeconômicos, como “mudança de moeda; inflação; variação cambial; maxidesvalorização; crise econômica; aumento do déficit público; majoração de alíquotas” (cf. Otavio Luiz Rodrigues Junior. Revisão judicial dos contratos e seus problemas contemporâneos).
Na tradição francesa, segundo a teoria da imprevisão “pura”, a alteração das circunstâncias precisaria ser não apenas imprevisível, mas também extraordinária. Para o reconhecimento do direito à resolução, seria inafastável a comprovação de que a circunstância foi modificada por evento oriundo de uma álea extraordinária, completamente impossível de ser antevista. Mais raras, então, seriam as hipóteses do direito à resolução contratual.
Já o último requisito previsto pelo art. 478 CC —extrema vantagem para a parte contrária — é frequentemente criticado pela doutrina e afastado pela jurisprudência. Quando comprovada a onerosidade excessiva, a vantagem da contraparte seria reconhecida apenas por presunção iuris tantum (v. Ruy Rosado de Aguiar Jr. Comentários ao novo Código Civil, v. 6, t. 2. Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 911).
Todavia, a norma não teria qualquer sentido se a resolução fosse autorizada em caso de onerosidade recíproca. Se é certo que o requisito da extrema vantagem deve ser interpretado com cautela, é igualmente evidente que que não se aplica a exceção se a contraparte estiver sofrendo os efeitos lesivos dos mesmos eventos imprevisíveis.
A resolução contratual depende, nesses termos, de reconhecimento judicial, mediante sentença desconstitutiva do vínculo contratual.
A terceira situação diz respeito à revisão contratual. O art. 317 CC prevê o direito do obrigado à correção do valor da prestação para seu valor real, em caso de manifesta desproporção oriunda de eventos imprevisíveis. Não há qualquer menção ao requisito da extrema vantagem à contraparte.
Sobre tal norma, a doutrina se divide em duas posições que, em última instância, levam a conclusões semelhantes.
Parte da doutrina interpreta o art. 317 CC como norma que hoje se tornou vazia, pois teria sido sancionada para conter desproporções em períodos de severa volatilidade cambial e problemas decorrentes de hiperinflação, com critérios preestabelecidos de atualização monetária. Durante a tramitação do Projeto de Código Civil, em mais de uma ocasião, a redação do dispositivo aludiu expressamente à “desvalorização da moeda”. Assim, quanto muito, referida norma seria um apêndice da resolução contratual por onerosidade excessiva nos termos do art. 478 CC (v., por todos, Otavio Luiz Rodrigues Junior. Op. cit.).
O outro segmento da doutrina enxerga o art. 317 CC como dispositivo de suma importância, por entender que é nele que estaria propriamente consubstanciado o direito à revisão contratual por eventos imprevisíveis, ao passo que o art. 478 CC diria respeito, apenas, à resolução do vínculo, como literalmente o faz (v., por todos, Judith Martins-Costa. Comentários ao novo Código Civil, v. 5, t. 1. Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 228-258).
Seja como for, as conclusões são semelhantes. O ordenamento autoriza não só a resolução, mas também a revisão dos contratos por alterações imprevisíveis das circunstâncias, seja por força de um ou de outro dispositivo legal. O requisito distinto entre os artigos – extrema vantagem para a contraparte - não é considerado obstáculo instransponível. Assim, de duas uma, ou a extrema vantagem da parte contrária é um requisito fraco para a autorização da revisão contratual (art. 478 CC) ou a sua comprovação não é sequer necessária (art. 317 CC).
Ademais, a exemplo da tradição italiana e ao contrário da força maior, cláusulas contratuais cujo intuito seja contornar as regras referentes a revisão/resolução contratual por excessiva onerosidade são reputadas nulas. Mesmo após a chamada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (Lei 13.784/19) que instituiu, especificamente para os contratos interempresariais, o art. 421-A CC possibilitando a negociação ex ante de “parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução”, não parece possível dispor, de forma genérica, que a onerosidade excessiva superveniente não poderá ser suscitada para pedido de revisão/resolução do contrato.
Apesar das distinções acima delineadas, os mesmos fatos podem servir como substrato para a ocorrência de ambas situações. Tome-se o caso dos milhares de estabelecimentos comerciais que se encontram impossibilitados de abrir suas portas por força de normas transitórias. Tal situação, certamente, poderá ensejar excessiva onerosidade para um sem número de obrigações já contraídas e tornar impossível o cumprimento de outras por força maior. Vários desses estabelecimentos estão obrigados, por exemplo, a pagar aluguel e honrar o contrato de seus fornecedores, além de entregar mercadorias a seus clientes. Ora, certamente, as duas primeiras obrigações são possíveis de serem cumpridas, ainda que tenham se tornado excessivamente onerosas, pelo menos em tese. Já o cumprimento da última obrigação, de entrega de produtos, pode ter seu adimplemento impedido pela força maior.
De resto, é válida uma observação sobre outra teoria que se relaciona à temática ora visitada. De proveniência britânica, a dita frustração do fim do contrato diz respeito ao fato de o contrato ter se tornado inútil (frustrado).
A teoria remonta aos Coronation cases, quando uma série de litígios surgiu porque, em junho de 1902, o Rei Eduardo VIII postergou a data de sua coroação por ter contraído momentânea doença (o mais citado é Krell v. Henry). Ocorre que vários apartamentos avarandados com vista para o local da cerimônia tinham sido alugados. O aluguel se tornou, portanto, absolutamente inútil. A Court of Appeal, a partir de então, criou a chamada frustration of purpose, a qual, em suma, prescreve que, se o contrato não tem mais finalidade, o devedor deve ser liberado da responsabilidade.
Na doutrina brasileira, em que pese menções apenas superficiais na jurisprudência, a teoria parece ter sido importada como uma espécie de tertium genus. No entanto, o fundamento legal para ausência de reponsabilidade pelo inadimplemento na tradição jurídica do Reino Unido é a impossibility. Somente a impossibilidade do cumprimento da obrigação é que livraria o devedor de sua responsabilidade, de modo que uma atenuação da teoria admitindo também a inutilidade como pressuposto fático seria, no mínimo, coerente.
Não obstante, o art. 393 CC não faz qualquer ressalva expressa à “impossibilidade”, de modo que seria perfeitamente possível alegar força maior por inutilidade econômica da prestação, sem necessidade de socorro à uma teoria alienígena. Lembrando que aqui a ideia é de absoluta inutilidade da prestação, o que não se confunde com a onerosidade excessiva.
Feitas essas ponderações, é importante reafirmar que os efeitos de uma crise econômica e de saúde pública, como a que se avizinha, podem criar duas situações completamente distintas: (i) o afastamento de responsabilidade decorrente da impossibilidade do cumprimento de obrigações por evento de força maior (art. 393 CC) ou (ii) o direito a revisão/resolução contratual por hipótese de onerosidade excessiva superveniente e imprevisível, desde que se tenha produzido, em contrapartida, presumível vantagem extrema para a parte contrária ou, pelo menos, que a onerosidade não recaia sobre os demais contratantes (arts. 317 e 478 CC).
Relações de consumo: Nas relações de consumo, o enquadramento legal é distinto. Tal peculiaridade é esperada e até mesmo desejável, já que vige um sistema específico para a defesa do consumidor.
Nos termos do art. 6o, V, CDC, o consumidor pode pleitear a revisão contratual “em razão de fatos superveniente que as tornem excessivamente onerosas”. Analogamente, não há o requisito do caráter extraordinário do evento e, mais importante, não é necessário comprovar imprevisibilidade.
Judith Martins-Costa, de forma inequívoca, reconhece a adoção da teoria da base objetiva: “fora de dúvida, nas relações de consumo, prevalece a Teoria da Base Objetiva, acolhida no CDC”(op. cit., p. 256).
Com efeito, a teoria da base objetiva estabelece que há direito de revisão ou resolução do contrato se for alterada a base objetiva do negócio jurídico em comparação com o momento de sua celebração. Não há necessidade de se perquirir a natureza do evento que ocasionou a alteração das circunstâncias. Basta uma análise objetiva, segundo padrões de conduta esperados para relações contratuais análogas.
A cláusula geral da boa-fé objetiva, por conseguinte, é alçada a critério principal de interpretação, para se aferir eventual perturbação do vínculo contratual.
Nesse ponto, salta aos olhos a coerência do ordenamento em atribuir maior protagonismo a um princípio social como o da boa-fé, precisamente nas situações de proteção ao consumidor. Ao contrário dos contratos empresariais, que são paritários por natureza, as relações de consumo ocorrem em um ambiente de profunda disparidade entre contratantes.
Já sob a ótica do fornecedor, não há nenhum dispositivo que preveja livramento de responsabilidade por força maior, tampouco revisão/resolução do contrato por onerosidade excessiva. Em tese, poderiam ser suscitadas as mesmas normas do Código Civil. A força maior seria até plausível (e.g. estabelecimentos comerciais fechados compulsoriamente). Já a onerosidade excessiva, dificilmente seria comprovada, mas, na teoria, poderia justificar a modificação ou extinção do contrato.
Contratos administrativos: Na seara dos contratos administrativos, a disciplina legal contempla maior número de filtros. O art. 65, II, da Lei 8.666/93, acolhe integralmente a teoria da imprevisão na sua acepção francesa, ao estipular que apenas eventos imprevisíveis e extraordinários servem como fundamento para a readequação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
O dispositivo legal abarca não só as ocorrências da teoria da imprevisão, mas também aquelas ocasionadas por atos da Administração Pública – fato do príncipe. Ao contrário da sistemática francesa, os efeitos da teoria de imprevisão e do fato do príncipe são análogos. Ambas situações ensejam o dever (e não a faculdade) de a Administração proceder ao reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, visando, em última instância, a proteção do interesse público (v. Eros Roberto Grau e Paula Forgioni. O Estado, a empresa e o contrato. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 117).
Além disso, a mesma norma também preconiza a força maior como substrato para o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Contrariamente aos contratos civis, a força maior não serve simplesmente para escudar a Administração de sua responsabilidade, ou seja, caso o cumprimento das obrigações se encontre obstado, é também necessária a tutela judicial para revisão do vínculo contratual.
Outra peculiaridade dos contratos administrativos é que há um regime específico para as hipóteses de rescisão do contrato, englobando, mais uma vez, ocorrências imprevisíveis e que tenham impedido o cumprimento de obrigações por prazo superior a 120 dias, facultada a suspensão temporária das obrigações (mas desde que não tenha sido proclamada circunstância de calamidade pública) (art. 78, XIV); e eventos de força maior, mantendo a disciplina dos casos de revisão (art. 78, XVII).
Conclusões: Como se observa, a alteração das circunstâncias e seu impacto nos contratos é tema intrincado, repleto de detalhes. Atentar-se às peculiaridades aqui discutidas é incumbência primordial, especialmente para informar o intérprete do melhor modo possível, a fim de alcançar a desejável uniformidade pretoriana, o quanto antes. Mesmo assim, somente o tempo permitirá compreender os verdadeiros impactos da pandemia e da crise econômica global.
Por fim, duas ressalvas, igualmente relevantes, devem ser registradas: Em que pese a doutrina e jurisprudência brasileiras ainda não terem se debruçado sobre um dever de renegociação ínsito a toda relação contratual, a exemplo do que já foi efetivado em outras experiências jurídicas, seria arriscado sustentar que tal dever simplesmente não existe no ordenamento jurídico brasileiro, mormente à luz dos princípios da função social e da boa-fé a teor dos arts. 421 e 422 CC (v., por exemplo, Vincenzo Roppo. Il contratto del duemila, 3a ed. Turim: G. Giappichelli, 2011; Oliver Hart e John Moore. Incomplete Contracts and Renegotiation. The Econometric Society, v. 56, n. 4, 1988; Anne-Sophie Lavefve Laborderie. La pérennité contractuelle. Paris: L.G.D.J., 2005). Por isso que, sem dúvida alguma, contratantes devem dar a devida atenção à possibilidade de renegociação do contrato, ainda que transitória.
A segunda ressalva concerne às leis transitórias. A conjuntura é tão alarmante que, na Alemanha, tal iniciativa já foi tomada, tendo sido prescritas inclusive regras sobre relações contratuais (v., a propósito, Otavio Luiz Rodrigues Junior. Alemanha aprova legislação para controlar efeitos jurídicos da Covid-19).
No Brasil, também já tramita, em caráter de urgência, o Projeto de Lei 1.179/2020, de relatoria do Sen. Antônio Anastasia, o qual também se direciona aos contratos, procurando regrar, em particular, a força maior, a onerosidade excessiva, o arrependimento do consumidor, a locação de imóveis urbanos e os contratos agrários, além de outras matérias.
Desse modo, mais do que a devida precaução e cautela ao lidar com os institutos contratuais clássicos, também é imperioso estar atento a eventuais mudanças transitórias que possam alterar as regras jurídicas vigentes.
Autor: Rogério Lauria Marçal Tucci LL.M. pela University of Chicago Law School, mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP e sócio do Tucci Advogados Associados.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 1 de abril de 2020, https://www.conjur.com.br/
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