2 de maio de 2015

As verdades que muitos desconhecem sobre a morte de Ayrton Senna.

Trechos de: "O que você ainda não sabe sobre a morte de Senna, 20 anos depois", de Livio Oricchio.

Fonte: http://esporte.uol.com.br/

Quem gosta de automobilismo sabe que esporte a motor sempre envolve riscos. Na nossa credencial permanente, distribuída pela FIA, está escrito exatamente isso. Mais: se acontecer algo conosco no autódromo, a responsabilidade não é da entidade.

"A largada do GP de San Marino ainda não fora dada e já havia um morto na história: Roland Ratzenberger, no sábado. Em Ímola, 1994, eu vivia as tragédias pessoalmente. Uma morte, portanto, tinha um peso enorme. E o piloto em questão não era um completo desconhecido.

Jirki Jarvilehto não disputara as duas primeiras etapas da temporada por ter se acidentado, com gravidade, na curva Stowe, em Silverstone, na pré-temporada. Ele era o companheiro de Michael Schumacher na Benetton. No sábado, no fim da tarde, conversei com ele.

Ratzenberger já tinha morrido. "Eu tive muita sorte". Disse Jarvilehto. Ele sofreu fratura de duas vértebras cervicais e, por milagre, a lesão óssea não se estendeu até a medula nervosa, que corre por dentro das cervicais. Se isso tivesse ocorrido, estaria paralítico.

Ele abaixou a cabeça, lançou os cabelos louros para a frente, e expôs a região posterior do pescoço, para que eu pudesse ver a cicatriz da cirurgia a que foi submetido. Era um corte impressionantemente longo e largo. Eu tinha bagagem: sou ex-estudante do curso de Medicina Veterinária da USP e também fotografei algumas cirurgias humanas, como transplantes de rins. Mesmo assim, me impressionei com a enorme cicatriz no pescoço do piloto.

Um novo impacto poderia matá-lo facilmente. E o fim de semana vinha cheio de prenúncios sinistros. Esse era apenas mais um dado que gostaria de registrar para explicar o que vem adiante.

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Acidente fatal de Roland Ratzenberger

Já na largada quase outra tragédia

14 horas: Roland Bruynseraede autoriza a largada da corrida. O público é excelente, como de hábito na Itália. Jyrki Jarvilehto, quinto no grid, não larga. O motor Ford da sua Benetton morreu. Uma parte do pelotão consegue desviar, mas sua posição é na frente no grid.

O português Pedro Lamy, com uma Lotus, acerta em cheio a traseira da Benetton, parada na pista. Uma roda da Lotus voa na direção da arquibancada e atinge vários torcedores. Com carros e detritos para todo lado no asfalto, o diretor de prova ordena a entrada do safety car na pista.

Senna lidera a corrida, seguido por Michael Schumacher. Da sala de imprensa, onde estava, temia pela vida de Jarvilehto e das pessoas que receberam o impacto da roda da Lotus de Lamy. Dá para compreender como todos que estavam no autódromo viam seus temores crescerem a cada instante? Estávamos sensibilizados com os acidentes da pré-temporada, envolvendo o próprio finlandês e Jean Alesi. E, desde a sexta-feira, os problemas se sucediam sem parar.

De novo, conversávamos entre nós, jornalistas, que John Barnard, projetista da Ferrari, estava com a razão: retiraram a eletrônica embarcada e não reduziram a potência, deixando os carros inguiáveis.

Os carros passavam a minha frente. Da janela da sala de imprensa à pista não havia mais de 20 metros. O safety car liderava o corso, com Senna em primeiro e Michael Schumacher em segundo. O safety car, naquela época, era um veículo de série, sem maiores preparações.

A velocidade com que percorria o circuito pouco tinha a ver com o mínimo exigido pelos carros de F1 para manter a temperatura dos pneus e dos freios num valor mínimo aceitável para quando a corrida fosse reiniciada. Hoje, o safety car é um Mercedes SLS AMG, com motor de 591 cavalos, superpreparado para o que a F1 exige. E sempre conduzido pelo mesmo piloto, o alemão Bernd Maylander.

1º de Maio, Dia de Senna. Para Sempre. (#Imola25TempoReal)

Acidente na largada - Jyrki Jarvilehto e Pedro Lamy

Relargada

No fim da quinta volta do GP de San Marino, o safety car deixou a pista e a corrida foi reiniciada. Vi a traseira da Williams de Senna raspando o asfalto com violência poucas vezes vista. Lançava fagulhas do contato dos discos de metal da prancha sob o assoalho com o solo. Compreendi que a baixa velocidade do safety car fez com que a pressão dos pneus da Williams caísse perigosamente.

Senna passou por onde me encontrava, pouco depois da linha de chegada, local da sala de imprensa, abrindo a volta depois da saída do safety car, com Michael Schumacher sempre bem próximo.

Eu o vi passar e, quando saiu do meu campo de visão, voltei-me para o aparelho de TV a minha frente, quando já estaria contornando a Tamburello, a primeira curva. A imagem que surgiu já mostrou a Williams seguindo reto pela tangente da velocíssima curva, contornada com o acelerador no curso máximo, em sexta marcha, a pouco menos de 300 km/h.

Lembro de ter visto a hora no terminal de computador que nos repassa uma série de informações das atividades de pista. 14 horas e 17 minutos, sexta volta do GP de San Marino, a primeira desde a relargada da prova. Estou redigindo quase tudo de memória. Pode ser que tenha sido na segunda volta depois de o safety car deixar a pista.

Curiosamente, ao entender que Senna iria colidir no muro, a primeira coisa que me veio à mente foi que aquela seria outra etapa sem marcar pontos. Repare que a noção de um Senna imortal estava incrustada também em mim. Eu tinha consciência de que ele iria se chocar em alta velocidade, mas em nenhum instante imaginei que pudesse se ferir. Ao menos, não gravemente.

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A imagem seguinte que nos foi oferecida pela TV italiana era já a da Williams desacelerando depois do impacto no muro. Epa! Pensei. Bateu forte mesmo. Enquanto o carro ainda se arrastava no cimento branco da área de escape da Tamburello, eu tentava identificar o estado do cockpit, verificar se o santantônio estava inteiro. Enfim, qualquer dado que me permitisse formar uma ideia da gravidade do acidente.

Quando a Williams parou, com Senna inerte dentro, e ele deu aquela pequena mexida na cabeça, imaginei que não se tratava de um acidente fatal. Ao contrário, não sei se por desejar que ele estivesse bem, naqueles segundos tinha a impressão de que Senna teria se ferido sem maior gravidade.

Mas, ao rever o acidente, logo em seguida, pude compreender que o elevado ângulo de impacto da Williams no muro e a distância percorrida desde o choque até a imobilização sugeriam ter havido uma desaceleração violenta, maior perigo nos acidentes. Identifiquei ao mesmo tempo, porém, bons sinais. O cockpit parecia inteiro, bem como o santantônio atrás e acima da cabeça do piloto.

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O acidente de Senna – ao vivo na Globo | JOSEINACIO.COM

A dura verdade emerge

Tudo começou a mudar quando vi o pessoal do regaste e os médicos abrirem um lençol branco a fim de impedir a obtenção de mais imagens do atendimento ao piloto. Isso sempre é um indicativo de sérios ferimentos.

O quadro se complicou ainda mais ao ver sangue no chão. Não estava certo se vinha de uma hemorragia ou de traqueostomia, para permitir que Senna respirasse melhor. Mais: os pés de Senna, deitado no chão, estavam por demais abertos. Se eles fossem os ponteiros de um relógio, formavam quase o horário 15 para as 3 horas. Tinha a certeza de que ele estava inconsciente.

Quando o piloto mantém os dois pés na posição 10 para as 2 ou cinco para a uma, em geral é um bom sinal (ou menos ruim). Senna estava no estágio mais avançado do "relógio da vida", 15 para as 3.

Os 20 anos da morte de Senna - BOL Vídeos

Nesse instante, saí da sala de imprensa e fui até a saída de boxe, de onde poderia atingir, por fora, cerca de 300 metros adiante, o local do acidente na Tamburello. Mas os comissários haviam bloqueado a passagem. Permaneci lá uns cinco minutos, acompanhando tudo através das imagens de TV instaladas nos boxes da Minardi. Fiquei ali para ver se não me deixavam mesmo passar. Na Itália, nem tudo é "pão, pão, queijo, queijo".

Angelo Orsi, um velho amigo da família de Senna, fotógrafo da revista Autosprint, com quem converso regularmente, voltava do local da batida. "Ele está mal, mal, perdia muito sangue pela cabeça", foram suas primeiras palavras. Levei um susto. Pela primeira vez compreendi que o caso era mais grave do que pensava.

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Ao cair em mim, corri para a sala de imprensa a fim de pegar meu computador, a bolsa e me dirigir, de novo, para o Hospital Maggiore de Bolonha, um velho conhecido. Eu já estivera lá na sexta-feira à noite, para visitar o Rubinho, no sábado, para ter mais notícias sobre Roland Ratzenberger, embora já soubesse que ele falecera. Agora, no domingo, repetiria os cerca de 50 quilômetros que separam o autódromo do hospital. Para algo inacreditável: descobrir se Senna iria sobreviver.

Eu estava revoltado. Depois de tantas desgraças, a próxima era previsível. Não sei se por inocência, comecei a achar que a corrida não deveria ser disputada. Alguma coisa estava errada e, quem sabe, Barnard estivesse certo demais. Já de posse das minhas coisas, caminhei rápido até o estacionamento da imprensa, ao lado da curva Rivazza.

Seria dada uma nova largada, sem Rubens Barrichello, sem Roland Ratzenberger e sem Senna. Ainda hoje reflito sobre o meu comportamento naquele instante. Lembro de ter gritado para alguém, sei lá quem, pois estava realmente atingido com a sequência de tragédias: Vocês querem matar mais um?

Mas, apesar do meu protesto, lá no fundo ainda tinha elevadas esperanças de chegar no Hospital Maggiore e receber a notícia de que Senna estava sendo operado, seu estado era grave, mas não irreversível.

Logo depois de estacionar o carro, entrar no Hospital Maggiore e acessar o 11º andar, onde estava o Centro de Terapia Intensiva (CTI), levei um grande baque. Precisei sentar para me recompor.

O médico que atendera Senna no helicóptero que o transportou do autódromo para Bolonha tirou de mim qualquer esperança de vê-lo vivo novamente. Seu relato é impressionante. Todos os detalhes das longas e sofridas horas no hospital estarão no próximo capítulo.

Não vi nada de diferente na rotina do hospital quando cheguei. Imaginava que haveria gente por todo o lado a fim de acompanhar uma eventual cirurgia em Senna. De imediato, compreendi que eu chegara bastante cedo ao hospital, a ponto de entrar no edifício e não ver um único jornalista. No fim de uma rampa que dá acesso a um saguão central, para onde todos se direcionam ao entrar no hospital, vi a primeira manifestação de que Senna estava lá.

Um policial, um Carabinieri, estava agitadíssimo. Alguém acabara de lhe dizer que o piloto se acidentara e há pouco havia chegado ao hospital, transportado de helicóptero. Ele tinha o chapéu na mão e dizia: "Meu Deus, o que é isso, não existe mais piloto como Senna, que corre com o coração".

Eu o ouvi enquanto entrava rapidamente no saguão principal, atrás de notícias. Estava mais tenso ainda. Mas ali não havia jeito. Se eu falhasse, provavelmente comprometeria o restante da minha carreira naquilo que tanto me dedicara para conseguir, ou seja, cobrir o Mundial de Fórmula 1 para a grande mídia brasileira. Cada vez que me lembrava disso ganhava força para deixar de lado minhas emoções.

Parei de pensar também nas reações que estavam ocorrendo no Brasil por conta do acidente de Senna, o que colaborou para eu me controlar. Nesse momento, vi Roberto Cabrini, repórter da TV Globo, com quem sempre tive boa relação profissional, e, um pouco mais tarde, Celso Itiberê, o correspondente do jornal o Globo em Milão.

Eu pensei comigo: se Senna morresse, todas as atenções estariam lá na Itália, ao menos até o embarque do corpo para o Brasil. Eu estava sozinho, seria o responsável por levar aos leitores dos jornais da empresa um painel de informações de tudo. Era uma grande responsabilidade.

Isso fez eu me concentrar quase doentiamente no meu trabalho. Ao mesmo tempo, comecei a elaborar uma estratégia de cobertura. As notícias estariam no hospital, mas também no autódromo. Era imprescindível ouvir Frank Williams, dono da equipe de Senna, Patrick Head e Adrian Newey, os homens que assinaram o projeto do modelo FW16 pilotado por Senna.

22 Best Senna's Crash images | Senna crash, Senna, Ayrton senna

Médicos realmente profissionais

Não encontrei no hospital um único cidadão que tivesse um mínimo de sensibilidade com o que estava se passando: um piloto de F1, ídolo em dezenas de países, mesmo na Itália, lutava para viver e os funcionários do hospital continuavam sendo mal-educados, grossos e desinteressados, mesmo com quem falasse em italiano com eles, como eu.

O que faltava de bom senso a essas pessoas sobrava nos médicos deslocados para o atendimento. Todos solícitos e não escondendo nenhuma informação. Fomos orientados a não subir ao 11° andar, mas era impossível atender o pedido do hospital. A notícia estava lá.

E eu não errei ao decidir pagar para ver. Logo que sai do elevador, encontrei um médico com roupas usadas no centro cirúrgico. "O senhor veio lá de dentro, viu o Senna, pode me dizer alguma coisa?", perguntei, meio afobado, primariamente, imaginando ouvir um desaforo. Para a minha surpresa, nada disso ocorreu. Descobri tratar-se do doutor Servadei, um dos que atendeu Senna ainda na pista e o acompanhou, no helicóptero, até o hospital. Apesar de profissional, ele estava abalado. Com voz baixa, começou a descrever o que vivera naquela última hora.

Choque ao tirar o capacete

Ele é quem fala: "Antes mesmo de retirar o capacete, ficamos impressionados com a quantidade de sangue que o piloto perdia. Alguma artéria havia sido atingida com certeza e minha primeira preocupação era, uma vez exposta a cabeça de Senna, tentar conter a hemorragia. Quem orientou a complexa retirada do capacete foi o doutor Sid Watkins, o médico da FIA. Mas tão logo tivemos acesso a sua cabeça, sem o capacete e a balaclava, compreendi que Senna não sobreviveria", disse-me o doutor Servadei.

"Vimos que a base craniana estava aberta e ele perdia massa cefálica, cérebro, pelo corte de mais de um centímetro de largura que corria por trás das orelhas, de lado a lado da cabeça. Para mim, ele havia batido a cabeça no muro da curva Tamburello, em alta velocidade. Isso explicava aquele traumatismo generalizado da caixa craniana".

Depois de ouvir aquilo, estava claro para mim que não havia mais o que fazer. A morte de Senna era uma questão de tempo. Pouco tempo. Lembro-me de ter procurado um lugar para sentar e dizer a mim mesmo que aquilo era verdade. Eu estava em choque.

Nesse instante, passou um cidadão que, educadamente, me informou que os médicos do caso falariam no centro de conferências do hospital, no térreo. Profundamente abatido, sem saber o que pensar, fui para lá, sempre transportando o meu bloco de anotações e o velho computador laptop Toshiba 1000, uma peça de museu se comparada aos que uso hoje.

Atrás da mesa do centro de conferência ficaram, de pé, o doutor Domenico Cosco, a doutora Maria Tereza Fiandri, o doutor Andreolli, neurocirurgião, o doutor Servadei e o doutor Gordini, anestesista.


Evidências do acidente de Ayrton Senna / SorocabaMotors




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Não há nada que possamos fazer

O primeiro a falar foi Andreolli, que descreveu o quadro como o mais traumático possível. "Não existe uma área específica do crânio que podemos atuar para a reparação, tudo foi danificado no acidente. O traumatismo é generalizado, bem como os danos a todo o tecido nervoso", explicou.

Entre a minha conversa com o doutor Servadei, no 11° andar, e o início da conferência houve um intervalo de uma hora. Já haviam muitos repórteres no hospital para acompanhar o caso. Na sala de conferência, pude observar até mesmo doentes de pijama, internados, que sabiam da internação de Senna em estado de emergência. Desejavam mais notícias.

A consternação pelo anunciado pelo doutor Andreolli foi impressionante. As pessoas tomaram consciência de que Senna, ídolo de tanta gente, aquele que parecia imortal, morreria no máximo em questão de horas. Entrei em contato com o nosso chefe de reportagem para informar o que já apurara e o que viria pela frente.

Como eu teria de escrever um volume respeitável de textos naquele dia, Castilho sugeriu que eu já enviasse o primeiro com o que tinha até então. Achei prudente. Sentei numa das cadeiras da sala de conferência e conectei meu laptop em uma tomada que descobrira ali, próximo da mesa dos médicos, que já haviam deixado o local.

Fui procurar o doutor Servadei novamente, o do helicóptero, que tão gentil se mostrara. Por sorte, o encontrei numa sala do térreo. Ele me deu mais detalhes: "A hemorragia que Senna tinha ainda na pista era tão violenta que durante o voo nós lhe demos litros de sangue". Ele também falou da perda de líquor, líquido cefalorraquidiano existente entre as camadas nervosas, a fim de protegê-las.

"Em decorrência da desaceleração sofrida pelo cérebro, Senna perdia massa cinzenta e líquor, o que começou a deformar rapidamente suas feições".

Toda vez que essas camadas são rompidas, o líquor, mantido sob elevada pressão entre elas, se espalha pelas cavidades que encontra, causando o inchaço de todos os tecidos. Em outras palavras, a cabeça de Senna estava se deformando rapidamente, ganhando volume.

Vida vegetativa

O doutor Gordini, o anestesista, próximo ao doutor Servadei, contou-me também outra passagem durante o voo de helicóptero até o Hospital Maggiore: "Senna teve uma depressão respiratória importante. Nós administramos drogas que reverteram o quadro. Mesmo que ele não tivesse sofrido todos os estragos no cérebro, decorrentes do impacto no muro, só aquela depressão já lhe teria causado danos irreversíveis no tecido nervoso. Ele teria apenas vida vegetativa. Seu cérebro recebeu pouco oxigênio durante um tempo precioso. No CTI, Senna chegou a ter uma parada respiratória. De novo, nós o reanimamos".

Observe que em nenhum momento os médicos falaram em afundamento do frontal, causado por algum componente do carro que se projetou na direção da cabeça no momento do impacto. Hoje, acredita-se que a barra que conecta a manga de eixo da suspensão dianteira direita ao conjunto mola-amortecedor, denominada push-rod, se soltou no choque do Williams no muro e se deslocou na direção do capacete de Senna.

A seguir a barra perfurou a viseira e pressionou a cabeça do piloto contra a parte de trás do cockpit. Essa compressão é que teria causado a fratura da base do crânio, descrita pelo doutor Servadei. A barra atingiu antes a artéria temporal, gerando a forte hemorragia.

Recapitulando: pouco antes das 16 horas eu já estava no Hospital Maggiore e conversava com o doutor Servadei, na porta do CTI. Às 16h30 a doutora Fiandri anunciou, no centro de conferências do hospital, que o neurocirurgião, doutor Andreoli, falaria sobre o estado de Senna. Ficamos sabendo que não havia como intervir cirurgicamente e que a morte era uma questão de horas.

Depois, voltei a falar com os médicos presentes no autódromo e eles me deram mais informações do atendimento. A doutora Fiandri, que se tornou uma espécie de porta-voz do grupo médico, nos avisou que só se pronunciaria se tivesse "alguma novidade".

Às 17h55, ela surge novamente no saguão principal do hospital, na porta do pronto-socorro. A esta altura, o hospital não mais permitia o acesso ao 11° andar, onde estava Senna, no CTI.

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Morte cerebral

A doutora Fiandri estava visivelmente emocionada. Uma multidão de repórteres se aproximou para ouvi-la. Não se manifestou até que o silêncio foi feito. Eu estava ao seu lado. Com a voz embargada, a médica afirmou: "Senhores, o eletroencefalograma de Senna não acusa mais atividade elétrica". Deu uma pausa. Parecia estar se recompondo. "Senna tem morte cerebral". Saiu em completo silêncio, devagar.

Os profissionais de imprensa que permaneceram no autódromo, a esta altura, com o fim da corrida, já estavam no hospital. Para a maioria, aquele foi o primeiro contato com os médicos que cuidavam de Senna. A notícia causou comoção em todos. Quem estava lá já sabia que o desfecho do caso seria aquele.

O comunicado da doutra Fiandre informava, no fundo, a morte de Senna. Seu coração continuava batendo, mas não por muito tempo. Vi pessoas chorando, entre eles jornalistas muito emocionados também. Eu ainda não chorara, talvez por conta daquele preparo a que me submeti, dizendo a mim mesmo que, ao menos enquanto estivesse ali, atrás de informações, mantivesse a situação sob controle. Mas estava abalado, sem dúvida.

Todos nós, jornalistas, precisávamos nos comunicar com nossas bases, para, de novo, informar o andamento das notícias. A doutora Fiandri, por exemplo, disse que só voltaria a falar com a imprensa às 21 horas ou se "tivesse alguma novidade". Isso depois de anunciar a morte cerebral do piloto, às 18h05.

A verdade crua e dura

Às 19h05, ela surgiu de novo, proveniente do pronto-socorro. Não era onde estava o piloto. Com os olhos marejados, claramente havia chorado, falou em voz pausada, carregada de emoção, enquanto não se ouvia um ruído sequer a sua volta, apesar da presença de centenas de jornalistas. Todos precisavam ouvir para acreditar.

"Senhores, por favor...(tempo para respirar fundo). Desde as 18h40, Senna não registra mais atividade cardíaca", afirmou. Nova pausa. Ninguém se manifesta, silêncio absoluto. A doutora Fiandri sugere ter algo mais a dizer e todos se mantêm ao seu redor. Com os olhos cheios de lágrimas, afirma delicadamente: "Senhores, Senna está morto".

O que aconteceu depois das 19h05, hora em que a doutora Fiandri anunciou, oficialmente, a morte de Senna, no Hospital Maggiore de Bolonha, foi impressionante. A imprensa do mundo inteiro, instalada no hospital, precisava passar a informação para seus veículos de comunicação.

No Hospital Maggiore havia, no térreo, próximo à porta do Pronto Socorro, onde a doutora Fiandre comunicava regularmente o andamento do estado de Senna, apenas quatro telefones públicos. Eles eram disputados pelos profissionais de imprensa e até por cidadãos que estavam lá por outras razões.

O que mais me incomodava àquele altura era como obter notícias do autódromo Enzo e Dino Ferrari, já que tão logo Senna se acidentou eu deixara Ímola para acompanhar a tentativa de recuperá-lo no hospital, em Bolonha. Além disso, não havia um único local onde se pudesse sentar e escrever um texto no hospital.

Eu não estava satisfeito com o que tinha para escrever. Seria tudo muito descritivo. E eu dispunha de tempo para apurar algo novo.

Cerca de uns 15 minutos depois de a doutora Fiandre anunciar a morte de Senna, eu estava próximo dos elevadores que davam acesso ao 11.° andar, onde estava seu corpo. Eu sabia, por exemplo, que o irmão do piloto, Leonardo, estava lá, junto de Galvão Bueno e Betise Assumpção, a assessora de imprensa de Senna, além de Celso Lemos, diretor da Senna Promoções.

Seria bastante importante, do ponto de vista jornalístico, ouvi-los, se possível. Eles viveram aquelas horas de angústia que antecederam a morte de um herói nacional, do seu relacionamento próximo.

Padre dá a extrema-unção

Enquanto aguardava o elevador, consciente de que me barrariam para acessar ao 11.° andar, conforme já nos haviam informado, um padre de barba longa e branca, baixinho, de idade já avançada, batina franciscana, quase uma caricatura, deixou um desses elevadores. Estava acompanhado de um senhor com idade próxima dos 50 anos. Desconfiei que eles vinham exatamente do local que eu desejava atingir, o CTI.

Padre, por favor, de onde o senhor vem?', perguntei.

"Sou o padre Amadeo Zuffa. Vim de Ímola para dar a extrema-unção a Senna. Hoje, 1º de maio, é dia de São José da Boa Morte, protetor dos moribundos, e desejava lhe oferecer a alma de Senna", disse-me o padre.

No dia 1° de maio do ano seguinte, o mesmo padre Amadeo Zuffa rezou uma missa no local do impacto da Williams, na curva Tamburello, mas pelo lado de fora do autódromo, para lembrar a passagem do primeiro ano da morte do piloto. Eu também estava lá, em meio a uma ribanceira limitada pelo rio Santerno, junto de algumas centenas de pessoas. Mas esse é outro capítulo da história.

Conforme mencionara, o padre estava acompanhado de outra pessoa que não quis se identificar. Ele falou: "Estou aqui apenas para acompanhar o padre, que não pode dirigir e se deslocar sem alguém para assessorá-lo". Tão logo o padre me disse o que estava fazendo no hospital, esse cidadão começou a falar sem parar.

"Senna estava sozinho, numa sala dotada de muitos aparelhos, típica desses centros de recuperação. Ficamos profundamente chocados com o que vimos", disse. Prosseguiu: "Senna estava nu, apenas com uma toalha pequena sobre a genitália. Para se ter uma ideia do que desejo dizer, eu e o padre não o reconhecemos. Soubemos que era Senna porque um médico nos disse que aquele era o paciente que procurávamos. Seu rosto estava irreconhecível. Sua cabeça ficou do tamanho de uma bola de basquete. Enquanto o corpo não apresentava nenhuma lesão aparente e estava branco, sua cabeça tinha a cor quase negra e estava desfigurada".

De fato, o doutor Servadei me explicara que quando o traumatismo craniano é profundo, como no caso de Senna, em geral há o rompimento das camadas nervosas, gerando o quadro descrito pelo acompanhante do padre.

Minutos de fama

Não contente em conversar comigo, o cidadão passou a contar, com entusiasmo, a outras pessoas, o que havia visto momentos antes no 11º andar. Eu o procurei e pedi para que parasse com aquele circo. Ele se sentia o centro das atenções, por ter detalhes daquilo que todos desejavam saber, ou seja, o estado em que se encontrava Senna.

Galvão Bueno e Betise Assumpção saíram do elevador nesse instante. Estávamos eu, o padre e o tal indivíduo no hall dos elevadores do hospital, no térreo. Leonardo Senna dirigiu-se a outro setor do hospital, a fim de liberar o corpo do irmão para o Instituto Médico Legal. Segundo Galvão Bueno, ele já estava um pouco recomposto do choque.

"Acabou, acabou", disse Galvão Bueno, bastante abalado, mas sem chorar. Betise Assumpção tinha os olhos inchados. Avisei ao Galvão o que o acompanhante do padre continuava fazendo. Nos dirigimos a ele e pedimos de novo que parasse de apresentar o seu show. Cada um tem o direito de dizer o que bem entende, mas naquele caso o que o cidadão pretendia era ser notícia. Ele entendeu nossa argumentação, recolheu o padre Amadeo Zuffa e, imagino, retornaram para Ímola.

Perguntei ao Galvão Bueno quem estava na antessala do CTI. Ele me informou que a única pessoa da F1 que passou por lá foi Gerhard Berger, grande amigo de Senna. O piloto austríaco entrou e saiu por uma porta lateral do hospital, não passou pelo saguão central, e ninguém o viu.

Gerhard Berger pensou em parar

Tempos mais tarde, numa conversa com Gerhard Berger, ele me confirmou ter visto Senna no CTI e que aquilo o fez pensar se valia mesmo a pena continuar correndo.

Por mais incrível que possa parecer, ninguém da equipe Williams apareceu no hospital para acompanhar, de perto, o drama do piloto da equipe. Soube, através de Galvão Bueno, que Frank Williams havia telefonado para lá, depois da corrida terminada, para ter mais informações de seu "amigo".

Eu já tinha o que escrever. Ao menos em relação ao que se passou no hospital. Depois, pensaria no autódromo. Precisava, agora, de um local para redigir e um telefone para enviar o texto pelo modem do meu velho Toshiba 1000.

Saí do hospital e comecei a procurar um hotel nas proximidades. Eu pagaria uma diária, escreveria minha reportagem, a mandaria para a redação e, em seguida, iria para o autódromo, em Ímola, distante cerca de 50 quilômetros de Bolonha. Eu não tinha nenhuma informação da repercussão da morte de Senna no meio da F1.

Não se esqueçam, internet não existia!

Custou para eu fazer a atendente do hotel entender que precisava conectar meu computador à linha telefônica. Existia ainda naquela época um enorme receio de que os computadores conectados à linha telefônica pudessem fazer ligações sem que o hotel as controlasse. E, acredite, poucos as autorizavam.

Precisei me desdobrar para a moça da recepção do hotel desbloquear a linha telefônica do meu quarto. Ah, ia esquecendo: os cartões de crédito internacionais, ao menos para os brasileiros, era uma novidade que há pouco apenas se estabelecera no país. Pagávamos tudo com dinheiro.

Não foi difícil redigir os vários textos que enviei para a redação depois de viver momentos intensos no Hospital Maggiore. As palavras fluíam naturalmente. Liguei para São Paulo, confirmei a chegada dos textos, paguei o hotel e me dirigi para o autódromo.

Autódromo seguiu sua rotina

Cheguei lá por volta das 22h30, se bem me lembro. Era grande o número de jornalistas que ainda trabalhava, mas obviamente não havia mais ninguém das equipes ou dirigentes da F1. Os que desmontavam os motorhomes, funcionários dos times, desenvolviam suas atividades normalmente. Para alguém que chegasse de fora e não soubesse da tragédia, sequer desconfiaria que naquela pista, horas antes, a F-1 havia perdido um dos maiores pilotos que o mundo conheceu.

Vi, no fundo da sala de imprensa, uma pessoa com a cabeça apoiada na mesa de trabalho. Eu me aproximei e vi que era a jornalista alemã Karin Sturm, profundamente atingida com a perda de Senna. Conversamos, tentei ser útil, ajudá-la a se recompor. Ela me passou algumas informações de como a morte de Senna havia repercutido no autódromo. Karin era, e ainda é, amiga da família Senna.".

23 anos sem Senna. E a matéria que um japonês não teve coragem de ...

Todos os grifos são nosso! 

Revisado em 30/05/2020.

Todas as fotos são reprodução de internet.

4 comentários:

Luciano disse...

Belo texto e condiz a verdade sobre o acidente,resgate,internação na Uti,extrema unção de um padre até a sua morte.Lamentável o Brasil ter perdido seu maior ídolo patriota assim.

Marcelo Freitas disse...

Muito forte senna sem duvida foi uma lenda que hoje descance em paz..

michael disse...

Belo texto,aquele primeiro de maio me veio esmagadoramente a cabeça, infelizmente...

Guilherme Horvath disse...

Na verdade todas essas notícias sobre o momento do acidente do Senna até sua morte, já tínhamos ouvido boatos do seu verdairo estado, algumas notícias já haviam vazado de forma distorcida e hoje lendo o texto do Livio entendo a origem de todas as informações e confesso que fiquei muito emocionado e imprecionado com todo conteúdo, confirmando todas especulações da época, parabéns Livio, você teve uma oportunidade profissional exclusiva, tenho a certeza de que não é o tipo de notícia que um profissional gostaria de cobrir, mas faz parte da profissão e da vida!